sábado, 18 de maio de 2024

Uma Partida de Xadrez Numa Noite de Natal!


Uma Partida de Xadrez Numa Noite de Natal!

Ele olhou para o tabuleiro de xadrez e viu o rei em perigo, depois o Filho indicou-lhe o relógio. Sim, era verdade mais um ano se aproximava do fim e naquele dia como acontecia desde que Ele criara o mundo, durante um minuto, não haveria mortos, as guerras paravam à meia-noite para serem retomadas 60 segundos depois, era a "tradição" segundo uns ou as regras do jogo como afirmavam certos políticos. Mas aquele peão dificultava a sua jogada com a torre e o Filho reparou que o minuto passara e o Pai esquecera-se de colocar o mundo que criara de regresso à inevitável narrativa histórica. E Eles ali continuaram sentados com a atenção presa no jogo de xadrez.

No mundo os soldados esperavam nas trincheiras pelas ordens superiores para retomarem os combates e os dias passavam, até que uma tarde começaram a regressar a casa, as guerras terminaram sem vencedores ou vencidos, a pouco e pouco as desigualdades começaram a diminuir, os sorrisos renasciam nos rostos, em África as guerrilhas regressavam às aldeias em paz e inventavam outro modo de vida, no Extremo-Oriente o ódio deu lugar ao amor e a guerra à paz, na Europa a paz regressara e a América deixara de sonhar com a guerra.

Entretanto as semanas transformaram-se em meses e o buraco na camada de ozono começou a diminuir e o nível das águas estabilizou e até a maioria começava a esquecer-se das epidemias e do tristemente famoso “covid” e aquele simples peão no tabuleiro de xadrez continuava a dificultar a jogada Dele. O Filho reparou na passagem das horas, mas nada lhe disse, porque desejava prolongar aquela partida de xadrez infinitamente, para que todos tivessem a oportunidade de reencontrar a felicidade.

Rui Luís Lima

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Café Paraíso!


Café Paraíso!

Pierre olhou em redor e todas as mesas do Café Paraíso estavam ocupadas e nesse preciso instante a porta abriu-se, deixando passar um casal fugido do deserto, em busca do céu protector, Jane e Paul ainda traziam as areias marroquinas nas suas roupas.

No lado direito da sala, Ernest contava a Francis que na véspera tinha jantado pombos, porque a dispensa estava vazia, enquanto Zelda dava gargalhadas sonoras ao ouvir o relato.

Mais um cliente que entra, é Celeste para comprar as habituais madalenas para o Marcel, ele não bebe café, só chá e raramente sai do quarto, anda em busca do tempo perdido.

Usando palavras quase codificadas André traça o rumo da sua escrita com Benjamin, mas sentada a seu lado, Nadja, uma refugiada russa, diz-lhe que o seu cachimbo está apagado: - mas isto não é um cachimbo minha cada amiga - responde ele a sorrir.

Por debaixo da arcada, Virgínia lê passagens do seu diário a Sílvia, sobre as razões da sua poesia habitar nas margens do texto, mas ela não a consegue escutar porque o seu pensamento está bloqueado em Ted.

Na mesa ao lado Madame Stein conversa com Alice, lançando o seu habitual veneno sobre os ausentes e presentes e de súbito as portas do Café Paraíso dão passagem a mais dois dos seus habitantes, são Jules e Jim que se juntam a François e iniciam uma alegre discussão do argumento do filme.

Longe de tudo e de todos, sentado no canto mais escuro da sala, o engenheiro naval observa aquelas almas, enquanto bebe o seu café e o absinto. Do outro lado da rua, o Esteves sem Metafisica, fecha a porta da Tabacaria.

Os ponteiros do relógio marcam as seis horas, Pierre vira-se na cama e acorda do sonho, mais um dia chuvoso aguardava a sua viagem até ao Café Paraíso.

Rui Luís Lima

segunda-feira, 13 de maio de 2024

O Frio e a Neve!


O Frio e a Neve!

Ele não queria acreditar, ao acordar, na paisagem que os seus olhos viam. A neve invadira por completo os telhados das casas e as ruas estavam brancas, cobertas por uma fina camada de neve, que ainda não se tinha derretido. Arrumou calmamente os seus pequenos haveres na velha mala que sempre trazia consigo, depois de a esconder no local habitual da casa abandonada que lhe servia de abrigo.

Num dos jardins da cidade duas crianças brincavam com a neve acompanhadas dos pais e ele, ao vê-las, recordou-se dos seus tempos de infância. Também ele fora criança e a memória que guardava dessa época aqueceu-lhe por breves instantes o seu corpo, do frio que sentia.

Desceu a rua lentamente e ao ver um automobilista em dificuldade decidiu ajudá-lo. Aproximou-se do veículo e ofereceu os seus serviços, começando a empurrar o veículo, esperando que uma moeda lhe acabasse por cair na mão. Mas o condutor, em vez disso, após ter conseguido sair da zona onde se acumulava uma enorme quantidade de neve, acelerou e desapareceu pela estrada fora, sem o mínimo gesto de agradecimento.

Ainda era cedo para ganhar as pequenas moedas que lhe iriam possibilitar sobreviver mais um dia, na sua vida triste e solitária. Com a passagem dos anos aprendera a não confiar em ninguém e depois desse dia trágico em que lhe roubaram os sapatos no albergue, decidira que se encontrava mais seguro a dormir sozinho, na pequena casa abandonada.

A televisão já andava pela cidade, a entrevistar as poucas pessoas que se aventuravam a sair de casa naquele domingo gelado e quando ele se aproximou da jornalista, ela olhou para ele, espantada com a sua figura, mas rapidamente lhe virou as costas, seguida pelo colega para o outro lado do passeio, para fazer a tão desejada reportagem. Não desistindo, também ele atravessou a rua e aproximou-se da jovem para lhe pedir uma moeda, mas foi de imediato afastado pelo “cameraman”, que lhe gritou para ele desaparecer dali. Ao ver que não iria servir de material noticioso, decidiu regressar a “casa”, subindo a rua novamente, transportando nos ombros o duro peso da solidão.

Lentamente, os farrapos de neve que ainda caíam foram dando lugar a uma chuva miudinha, que começou a limpar as ruas da sua camada branca e fria.

Nesse domingo gelado, o sol decidira fazer folga e apenas o frio se iria apresentar ao trabalho.

Rui Luís Lima

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Tabacaria Orquidea!


Tabacaria Orquidea!

Na Tabacaria há jornais e revistas,
tabaco, fósforos e isqueiros,
lápis, canetas, borrachas e apara-lápis,
mas também tinteiros,
pequenas bombas de gasolina
a dez tostões para isqueiros
e latas de gaz para isqueiro, para os mais finos,
vejo-me aflito a encher os isqueiros
e a colocar correias nos relógios.

Também temos livros
dos clássicos às coboiadas,
Corin Tellado e familiares,
policiais, guerra e o Asimov para quem fuma cachimbo,
mais o Vilhena debaixo do balcão para os amigos!
Uns são vendidos e outros alugados
15 tostões os mais antigos e dois escudos as novidades.

Depois há os postais, para todos os géneros:
aniversários, romance e uns mais atrevidos debaixo do balcão.

Na Tabacaria temos pastilhas elásticas Pirata para os miúdos
e chocolates da Regina para os gulosos.
Come chocolates pequena, como dizia o Engenheiro.
Mas Digital não temos, caro Costa,
por aqui há envelopes, papel de carta, avulso e em blocos,
confesso que adoro os de papel fino para avião,
mas tenho pena dos de tarja preta e dos seus clientes.

A tabuada do Ratinho vende-se bem e já a decorei toda a cantar,
os cadernos de duas linhas ajudam-nos a ter uma letra bonita,
os quadriculados a respeitar os números nos quadrados,
os de desenho dizem se temos talento,
mas do que gosto mesmo são das sebentas,
com aquele cavaleiro andante parecido com o Ivanhoe!

Sabonetes e dentífricos também se vendem bem,
Nove em cada 10 estrelas de Hollywood usam Lux,
(não sei se os números estão certos)
mas eu gostava era do Nordika,
tinha aquele cheiro dos pinheiros da Escandinávia
(embora nunca lá tivesse estado).

Mais o 4711 e a Bien Être para oferecer à namorada
e as alianças a 25 tostões muito procuradas,
por essas raparigas simpáticas que navegam no Bairro,
uma delas um dia perguntou-me se tinha camisas de Vénus,
era bem gira, confesso!

Quando chega o Natal a Tabacaria muda de cor,
fica cheia de brinquedos, jogos e bonecas,
as gentes do Bairro, nessa véspera de Natal,
levaram-nos a fechar a porta muito depois das nove da noite,
para despachar o embrulho das prendas
usámos uns laços já feitos que estavam para venda
e depois lá fomos comemorar o Natal para o Largo do Carmo.

Na Tabacaria, que abria às sete da matina
e fechava muitas vezes depois das nove,
havia de tudo: meias de senhora, pentes, atacadores, brincos,
e todo um universo que insistem em nos eliminar da memória.
Não se parava um minuto, mas eramos felizes sem o digital.

Rui Luís Lima